segunda-feira, 7 de maio de 2007

Diluindo Preconceitos

Desde o início do ginásio quem tem uma educação escolar mediana começa a internalizar a idéia de que as palavras possuem funções morfológicas, sintáticas e semânticas, mas as funções sociais para que se usam alguns termos são intrigantes e por vezes imperceptíveis... Não que cada um dos vocábulos do nosso idioma seja usado para uma única colocação social, pois que (ainda a nível de gramática) dentro de uma frase as palavras podem mudar completamente de significado e verbos passam a ser substantivos quando na posição de sujeito, imagine-se então a nível de sociedade, que possui regras bem menos definidas – e mais complexas – que a gramática.
Ainda assim, mesmo com a consciência da elasticidade e adaptabilidade dos empregos em sociedade das expressões da nossa língua, há alguns usos correntes para certas palavras. Tome-se como exemplo a conjunção adversativa “mas”, que dentre outros postos típicos, ocupa aquele infeliz de demonstrar preconceitos das mais variadas ordens com uma disfarçada relativização. Afinal, quem nunca ouviu uma frase parecida com “Lúcia é crente, mas é minha amiga”? Por vezes concluídas “brilhantemente” com algo como “Você precisa ver! Ela é super aberta, não é conservadora, é tão gente boa!”.
E os exemplos não se resumem de forma alguma ao do parágrafo acima. Outras colocações tão clássicas quanto ela são igualmente notáveis, tais quais: “Juninho é baiano, mas tá aí cara que não é preguiçoso!”, “Marcela é negra, mas pense numa negra bonita!”, “Vejo com bons olhos a entrada da mulher no mercado de trabalho, tenho colegas de trabalho fantásticas, mas não quero que a Mariana trabalhe. Eu ganho muito bem, por nós dois”, “Eu não tenho nada contra ‘viado’, tenho até amigo ‘viado’, mas se der em cima de mim, apanha!”, “Eliane é pobre, mas é limpinha” e “Alejandro é argentino, mas até que é camarada!” ou ainda “Marcos não tem as pernas, mas é tão inteligente, você precisa ver!”.
A lista de discriminações relativizadas e disfarçadas pelo “mas” (e agora “mas” não apenas enquanto vocábulo, mas enquanto a própria idéia de ressalva) é interminável e com certeza não se resume às formas mais tradicionais de opressão mostradas nos exemplos acima – intolerância religiosa, preconceito regional, racismo, machismo, homofobia, preconceito econômico, xenofobia e discriminação a portadores de necessidades especiais – sendo bem mais ampla e mostrando nuanças muitas vezes imperceptíveis do contemporâneo fenômeno de dissimulação de preconceitos.
A verdade é que as militâncias de grupos oprimidos tiveram grandes conquistas (ainda que muito aquém das reais necessidades) e o capitalismo neoliberal já percebeu nesses grupos uma enorme fatia do mercado consumidor, o que gerou na grande mídia – mesmo que de forma primária – o argumento de que “preconceito é feio”. O resultado é que os preconceitos não foram extintos, são na verdade cada vez mais imperceptíveis, disfarçados, internalizados e diluídos a um ponto que quase ninguém vê essas discriminações enquanto tais em certas ações. Por exemplo, pouca gente acharia machismo internalizado à sociedade certos atos de cavalheirismo ou o fato da maioria dos garçons sempre entregar a conta para o homem quando há um casal heterossexual de mesma idade e aparentando mesma classe social num bar, lanchonete ou restaurante.
A própria mídia ao argumentar que “discriminação é uma coisa feia” acaba mostrando preconceitos internalizados, e ajudando a sociedade a internalizá-los. A exemplo disso temos que os gays da ficção televisiva que, quando não mostrados com um humor debochado, nunca são afeminados nem se beijam. Porque será? Seria certo, então, a sociedade rir dos afeminados e aceitar os homossexuais masculinos “machões” no seu seio, mas não que eles demonstrem afeto em público? E as musas negras? Porque ainda são “da cor do pecado”? São, para a mídia, as brancas da cor da castidade? Essas são, sem dúvida, perguntas realmente intrigantes.
O fato é que, para muitos, essa relativização, disfarce e diluição de preconceitos é bem pior do que a mostra escancarada deles, pois dificulta a revolta e militância por parte dos oprimidos, já que a discriminação não é, muitas vezes, vista como tal. Pior ou não, é certo que internalizar preconceitos torna a quebra deles ainda mais difícil. As minorias não militam por ressalvas ou concessões, não lutam por um “mas”, e sim pela quebra total e absoluta dos preconceitos da sociedade. E pra você? “Eles estão até certos, mas exigindo muito”?

2 comentários:

Nelson Oliveira disse...

Truques neoliberais penetram as mentes bem facilmente e tem alto poder de enganação.

Com certeza é mais um enorme empecilho para que as minorias possam adquirir seu espaço. Creio que o papel das ONGs será cada vez maior também - e principalmente - nesse sentido de auxiliar a voz das minorias.

Marcelo Oliveira disse...

O mas é uma conjunção perigosa e que deve ser interpretada de forma cuidadosa.
Ela pode carregar tanto uma carga de preconceito quanto de conceito, que podem se confundir quando é usada.
A construção: "Tal pessoa é X, mas é Y" pode não ser alimentada de preconceitos também.

Só que isso não está em jogo, e sim o mas nocivo. Abaixo ele!